A literatura fantástica é um gênero literário abrangente, que comporta muitas vertentes como ficção científica, horror cósmico, literatura weird, fantasia, entre muitos outros. Porém hoje quero falar um pouco sobre uma estética específica dentro da literatura fantástica, muito particular de nós brasileiros: o realismo mágico.
O “real maravilhoso”, como também é chamado, é uma vertente estética bem assentada na América Latina e possui grandes nomes que dão vida ao estilo, caracterizado por dois grandes elementos.
O primeiro deles é transformar a realidade ao nosso redor, com todos os seus contextos sociais, políticos e históricos, em algo excepcional – com um toque de magia. A partir daí a mágica é tratada como algo intuitivo; não precisa ser explicado, pois faz parte do cotidiano e ninguém realmente quer saber como funciona.
“O sobrenatural não é algo simples ou óbvio, mas é de fato algo ordinário, um acontecimento do dia a dia – admitido, aceito e integrado na racionalidade e materialidade do realismo literário”
-Wendy Zamora e Louis B. Faris
A origem do gênero, na América Latina, deu-se durante a década de 60, quando muitos países viviam ditaduras militares, de modo a servir como uma forma de contracultura – baseada na superstição.
Autores icônicos da espécie surgiram em todos os cantos: Murilo Rubião, Dias Gome e José J. Veiga no Brasil; Gabriel Garcia Márquez na Colômbia; Isabel Allende e Mario Vargas Llosa no Peru; Jorge Luiz Borges na Argentina; Arturo Uslar Pietri na Venezuela; Alejo Carpentier em Cuba; Carlos Fuentes no México; Miguel Angel Astúrias na Guatemala, entre outros.
Em muitas das histórias do realismo mágico, alguns aspectos são recorrentes e formam as bases do estilo. Como dito acima, transformar a realidade em algo maravilhoso, cotidiano, é o mais presente deles. Porém, a forma como o tempo é tratado é muito característica. Em algumas obras, como em Cem Anos de Solidão (Gabriel Garcia Márquez) e A Casa dos Espíritos (Isabel Allende), o tempo é cíclico - parte de um ponto e dá uma volta para retornar de onde partiu. As histórias versam sobre gerações as quais acabam passando por situações similares, como se a linearidade do tempo fosse pervertida, distorcida para que passado e presente representem uma mesma realidade.
Imaginar o insólito como algo que não interrompe o cotidiano dos personagens é algo muito típico do RPG, mas na maioria das vezes isso não se mistura com a racionalidade e mistério fundamentais presentes no realismo mágico.
Num RPG, normalmente partimos do extraordinário para depois pensar na realidade, enquanto no gênero discutido o fantástico é assumido como algo já parte dela, e a história tratará de temas a respeito – com um toque mágico maravilhoso, transformando-a em algo surpreendente.
Em determinado momento enquanto escrevia As Chaves da Torre, deparei-me com uma escolha de estilo, e as regras do realismo mágico fizeram todo sentido para minha proposta. Toda a estética e estilo fazem dele um RPG do gênero, e, sobretudo, é um jogo latino-americano.
Vivenciar memórias cíclicas lançadas no abismo, sendo uma pessoa esquecida que não avança no tempo – pois você foi apagada de uma realidade por um efeito mágico, o esquecimento do Oblívio. As Lacunas e eventos tratados de forma natural pelas pessoas, as quais vivenciam e ignoram – abandonam – aquilo que não lhes compete. Tudo isso enquadra o jogo dentro das regras do realismo mágico.
Especialmente o que diferencia a estética escolhida da fantasia urbana clássica está no foco. Enquanto a fantasia urbana se prende e dá holofotes para o sobrenatural a fantasia, no realismo mágico o que realmente importa são pessoas comuns, que vivem uma realidade tocada pelo maravilhoso, sem nem se dar conta disso.
REFERÊNCIAS DO REALISMO MÁGICO
Você conhece algum outro jogo de RPG o qual se enquadra nessas regras de estilo? Deixe um comentário.
E se você não conhece o estilo, mas ficou interessado e não sabe por onde começar, deixarei aqui três dicas de obras literárias que merecem ser lidas:
Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Márquez. O autor colombiano venceu o Prêmio Nobel de Literatura em 1982, o que já denota a sua qualidade. Por sua vez, a obra é tida como a mais icônica do realismo mágico, uma obra-prima reconhecida como um clássico da literatura. Isso por si só a coloca no topo desta lista de leitura. O texto observa todas as regras encontradas nas outras histórias. É um livro grande e denso, mas uma leitura excepcional. Se você é um leitor irregular ou casual, pode demorar um pouco para ler as aproximadas 400 páginas (varia por edição), entretanto não se arrependerá.
Se você preferir contos, do mesmo autor, procure o livro Doze Contos Peregrinos.
Ficções, de Jorge Luiz Borges. É uma obra de contos, como muitas do autor, porém apresenta leituras que entregam muito daquilo a ser considerado a tendência literária objeto deste artigo. A pluralidade de cenários e temas vai de metalinguagem da escrita até planetas desconhecidos e cidades estudadas por grupos secretos. Outras obras do autor, como O Aleph e Outros Contos, também trazem parte desse teor e até mesmo transitam no horror cósmico, fundamental para o estilo Ficções.
A Hora dos Ruminantes, de José Jacinto Veiga. Esta lista não poderia deixar de ter um componente da literatura brasileira, e é considerada a obra mais importante do autor. Esse livro assume a literatura do absurdo para exibir o contexto do maravilhoso comum. A história revolve uma cidadezinha que vive mudanças inesperadas e chegam a ter a lógica de cão e humano invertida. A mágica da escrita aproxima a prosa fantástica e a narrativa realista. Merece ser lido, sem sombra de dúvidas.
Porém, o realismo mágico ultrapassa a literatura. Como estilo artístico ele tem ligações com escultura, pintura e tantas outras formas de expressão. Vamos conhecer alguns expoentes.
Ernst Fuchs foi um pintor, arquiteto e visionário considerado por muitos o pai do realismo mágico. Suas obras psicodélicas merecem um olhar atento, pois ele tem trabalhos magníficos, tais como o Salmo 69.
Arturo Rivera, um mexicano que trabalhou em Nova York como ajudante de cozinha, na construção civil e em uma fábrica de tintas para poder pagar seu trabalho artístico. Desse inicio comum para milhares de latinos, surgiu o artista, o criador de realidades. Seus trabalhos são magníficos, lindos e assustadores, formando um mundo de coisas fantásticas e esquecidas, afastados de nós apenas por um piscar de olhos.
Texto: Arthur Pinto de Andrade
Revisão: Grazi Evangelista
Σχόλια